quinta-feira

Por Ed René Kivitz

Deus e o sofrimento humano

Por Éd Rene


Se Deus é onipotente, pode tudo. Se pode tudo, porque não evita o sofrimento? Se não o evita, é sinal de que ou não é onipotente ou não é bom.

Acho que Epicuro foi quem formulou a questão a respeito da relação entre a onipotência e a bondade de Deus. A coisa é mais ou menos assim: se Deus existe, ele é todo poderoso e é bom, pois não fosse todo-poderoso, não seria Deus, e não fosse bom, não seria digno de ser Deus. Mas se Deus é todo-poderoso e bom, então como explicar tanto sofrimento no mundo? Caso Deus seja todo-poderoso, então ele pode evitar o sofrimento, e se não o faz, é porque não é bom, e nesse caso, não é digno de ser Deus. Mas caso seja bom e queira evitar o sofrimento, e não o faz porque não consegue, então ele não é todo-poderoso, e nesse caso, também não é Deus. Escrevendo sobre a Tsunami que abalou a Ásia, o Frei Leonardo Boff resume: "Se Deus é onipotente, pode tudo. Se pode tudo porque não evitou o maremoto? Se não o evitou, é sinal de que ou não é onipotente ou não é bom".

Considerando, portanto, que não é possível que Deus seja ao mesmo tempo bom e todo-poderoso, a lógica é que Deus é uma impossibilidade filosófica, ou se preferir, a idéia de Deus não faz sentido, e o melhor que temos a fazer é admitir que Deus não existe.

Parece que estamos diante de um dilema insolúvel. Mas Einstein nos deu uma dica preciosa. Disse que quando chegamos a um "problema insolúvel", devemos mudar o paradigma de pensamento que o criou. O paradigma de pensamento que considera o binômio "onipotência/bondade" como ponto de partida para pensar o caráter de Deus nos deixa em apuros. Existiria, entretanto, outro paradigma de pensamento? Será que as palavras "onipotência" e "bondade" são as que melhor resumem o dilema de Deus diante do mal e do sofrimento do inocente? Há outras palavras que podem ser colocadas neste quebra-cabeça?

Este problema foi enfrentado por São Paulo, apóstolo, em seu debate com os filósofos gregos de seu tempo. A mensagem cristã era muito simples: Deus veio ao mundo e morreu crucificado. Pior do que isso: Deus havia sido crucificado num "jogo de empurra" entre judeus e romanos, isto é, diferentemente dos outros deuses, o Deus cristãos havia sido morto não por deuses mais poderosos, mas por homens. Sendo Deus, jamais poderia ser morto por mãos humanas, e sendo o Deus onipotente, jamais poderia nem mesmo ser morto. Paulo, apóstolo, estava, portanto, diante de um dilema semelhante ao proposto por Epicuro: Deus era uma impossibilidade filosófica.

Foi então que os apóstolos surgiram com uma resposta tão genial que os cristãos acreditamos que foi soprada pelo Espírito Santo: antes de vir ao mundo ao encontro dos homens, Deus se esvaziou da sua onipotência,[i] isto é, abriu mão do exercício de sua onipotência, e por amor,[ii] deixou-se matar por eles.[iii] (Eu disse que "Deus abriu mão do exercício de sua onipotência", bem diferente de "Deus abriu mão de sua onipotência").

O apóstolo Paulo admitia que não era possível pensar em Deus sem considerar o binômio bondade/onipotência. Optou pela palavra amor, assim como o apóstolo João, que afirmou "Deus é amor",[iv] e afirmou que Jesus de Nazaré foi Deus encarnado na forma de Amor, e não Deus encarnado na forma de Onipotência.

Isso faz todo o sentido. Um Deus que viesse ao encontro das pessoas em trajes onipotentes chegaria para se impor e reivindicar obediência irrestrita, impressionando pela sua majestade e força sem iguais. Jung Mo Sung adverte que "a contrapartida do poder é a obediência, enquanto a contrapartida do amor é a liberdade".[v] Também assim pensou o apóstolo Paulo, ao afirmar que o que constrange as pessoas a viver para Deus é o amor de Deus (demonstrado na morte de Jesus na cruz),[vi] e nunca o poder de Deus.

Na verdade, "Deus não tinha escolha". Ao decidir criar o ser humano à sua imagem e semelhança, deveria cria-lo livre. Desejando um relacionamento com o ser humano, deveria dar ao ser humano a liberdade de responder voluntariamente ao seu amor, sob pena de ser um tirano que arrasta para sua alcova uma donzela contrariada. Somente o amor resolveria esta equação, pois somente o amor dá liberdade para que o outro seja livre, inclusive para rejeitar o amor que se lhe quer dar.

Ricardo Gondim me introduziu ao pensamento de Comte-Sponville.[vii] Este ateu confesso (como bom francês) discorre a respeito do amor divino como poucos que já li. Acredita que o amor divino é um ato de diminuição, uma fraqueza, uma renúncia. Usa os argumentos de Simone Weil: "a criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos do que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua presença secreta aqui embaixo, essas religiões são a verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande Revelação. As religiões que representam a divindade como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas. Mesmo que monoteístas, são idólatras".

Você já imagina onde quero chegar. Isso mesmo, entre a onipotência e a bondade de Deus existe a liberdade do homem, e o compromisso de Deus em respeitar esta liberdade. Isso ajuda a entender porque existe tanto sofrimento no mundo. O mal não procede de Deus e não é promovido ou determinado por Deus. O mal é conseqüência inevitável da liberdade humana, que teima em dar as costas para Deus e tentar fazer o mundo acontecer à sua própria maneira. Diante do mal e do sofrimento, o Deus com os homens, encarnado em Amor, também sofre, se compadece, tem suas entranhas movidas de compaixão.[viii]

Mas você poderia perguntar, porque razão Deus não acaba com o mal. Isso é simples: Deus não acaba com o mal porque o mal não existe. Marilena Chauí diz que "o mal é o pecado, isto é, a transgressão da lei divina que o primeiro homem e a primeira mulher praticaram. Sua punição foi o surgimento de outros males: morte, doença, dor, fome, sede, frio, tristeza, ódio, ambição, luxúria, gula, preguiça, avareza. Pelo mal, a criatura afasta-se de Deus, perde a presença divina e a bondade original que possuía. O mal, portanto, não é uma força positiva da mesma realidade que o bem, mas é pura ausência de bem, pura privação do bem, negatividade, fraqueza. Assim a treva não é algo positivo, mas simples ausência da luz, assim também o mal é pura ausência do bem. Há um só Deus, e o mal é estar longe e privado dele, pois ele é o bem e o único bem". Em outras palavras, o mal não existe, o que existe é o malvado, aquele que faz surgir o mal porque se afasta de Deus, o supremo e único bem.

Ariovaldo Ramos resumiu isso ao afirmar que "para acabar com o mal, Deus teria que acabar com o malvado". Mas, sendo amor, entre acabar com o malvado e redimir o malvado, Deus escolheu sofrer enquanto redime, para não negar a si mesmo destruindo o objeto do seu amor. Por esta razão Deus "se diminui", esvazia-se de sua onipotência, e se relaciona com a humanidade com base no amor, fazendo nascer o sol sobre justos e injustos,[ix] e mostrando sua bondade, dando chuva do céu e colheitas no tempo certo, concedendo sustento com fartura e um coração cheio de alegria a todos os homens.[x]

É uma pena que Epicuro não tenha lido os apóstolos cristãos, não tenha corrido no parque ao lado de Ricardo Gondim, e não tenha ouvido Ariovaldo Ramos pregar, e nem tenha assistido a aula que tive com Jung Mo Sung esta semana.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Em que mundo você vive?

por Ed René Kivitz



Como você completaria a frase “eu vivo num mundo...”?

Não sei em que mundo você vive. Talvez o seu mundo seja descrito com palavras como belo, maravilhoso, perfeito. Ou, quem sabe, palavras como caótico, assustador, injusto. Não sei em que mundo você vive. Mas eu vivo em um mundo marcado pelo sofrimento humano.

Deus tem uma resposta para esse mundo marcado pelo sofrimento, e a resposta de Deus é a igreja de Jesus Cristo. A primeira resposta de Deus não é uma explicação teórica, teológica ou filosófica. A resposta de Deus é uma ação. Primeiro, enviando Jesus – “não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele” João 3.16,17, e, depois, enviando a igreja, nas palavras de Jesus: “Assim como me enviaste ao mundo, eu os enviei ao mundo” João 17.17; João 20.21.

Esta é a razão porque Jesus adverte seus discípulos a respeito da possibilidade da irrelevância da igreja. É por meio da igreja que Deus atua no mundo que se decompõe e apodrece – a igreja é sal da terra. É também por meio da igreja que Deus ilumina um mundo em trevas – a igreja é luz do mundo. Mateus 5.13-16.

A igreja é o sinal histórico do reino de Deus. Isto é, é por meio da igreja que Deus está presente no mundo. Mas a igreja pode fracassar em sua vocação. Pode ser um sal que perdeu o sabor e pode ser uma luz escondida. A advertência de Jesus é estímulo para a reflexão. A pergunta que devemos fazer é: de que maneira a igreja se torna sinal do reino de Deus?

A igreja é necessariamente uma comunidade de doadores. A igreja é a comunidade cujo requisito essencial para ingresso é a conversão ao Evangelho de Jesus Cristo ou, se preferir, à própria pessoa de Jesus Cristo. Isso significa que a condição imprescindível para que alguém faça parte da igreja é a experiência de negar a si mesmo. Isso significa que a igreja é essencialmente a comunidade daquele tipo de gente que não vive mais para si mesma Mateus 16.24-26; 2 Coríntios 5.14,15.

Diante da vulnerabilidade que é viver em um mundo marcado pelo sofrimento, onde ninguém está blindado contra a tragédia, as contingências e infortúnios da vida, a segurança possível não está na posse de riquezas e na vida egoísta, individualista e centrada em si mesmo. A segurança de que precisamos para viver em um mundo marcado pelo sofrimento está em Deus. Mas também está na comunidade dos seguidores de Jesus, aquele universo de pessoas que vive, não mais para si mesmo, mas para a comunhão, em que todos se ajudam mutuamente a superar o mal e a atravessar o dia do sofrimento com dignidade. Na igreja, a comunidade dos seguidores de Jesus, encontramos socorro e consolo, pois a igreja, a comunidade da solidariedade e da compaixão, é a resposta de Deus para um mundo marcado pelo sofrimento.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Maior felicidade

Por Ed René Kivitz


Jesus ensinou que "há maior felicidade em dar do que em receber" (Atos 20.35). E não é difícil compreender suas razões. A experiência de dar nos aproxima de Deus e nos assemelha ao seu Filho Jesus, pois Deus é amor, e a expressão do amor é a dádiva: Deus amou o mundo e deu seu Filho (João 3.16). Jesus aprendeu com seu Pai: "como o Pai me amou, assim eu vos amei" (João 15.9), e sabia que não era possível amar sem dar: "ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos" (João 15.13), e por isso fez a opção pelo amor e pela doação: "eu dou a minha vida; ninguém a tira de mim, mas eu a dou por espontânea vontade" (João 10.17,18).

A contribuição e a doação dos discípulos de Jesus promovem justiça e suprem necessidades de tantos à margem dos bens mínimos implicados na vida com dignidade, pois a fartura de uns supre a falta de outros, de modo que "quem tinha recolhido muito não teve demais, e não faltou a quem tinha recolhido pouco" (2 Coríntios 8.14,15).

A experiência de dar nos torna cooperadores de Deus, pois assim como Jesus Cristo deu a vida por nós, também devemos dar a vida pelos irmãos (1 João 3.16). A cadeia da vida iniciada no ato voluntário de Deus ao criar, seguida pelo ato voluntário de Jesus Cristo ao encarnar para morrer e ressuscitar, deve ser continuada pelos que se renderam ao amor de Jesus, que os comissiona: "Assim como o Pai me enviou, eu os envio" (João 20.21). A contribuição de cada discípulo de Jesus resulta em gratidão a Deus e glória ao seu nome: "a generosidade resulta em ação de graças a Deus", "transborda em muitas expressões de gratidão a Deus", e por meio do serviço dos doadores "muitos louvarão a Deus" (2 Coríntios 9.11-13).

Os discípulos de Jesus consideram a oportunidade de contribuir um privilégio concedido pela graça de Deus, e de tal maneira são solidários ao coração de Deus em seu espírito de amor e dádiva que, mesmo em meio às severas dificuldades e extrema pobreza, "transbordam em pródiga generosidade". O que doam não lhes é arrancado, pois a si mesmos já se entregaram em oferta a Deus, pois aprenderam que nunca deu, quem deu do seu, sem dar de si (2 Coríntios 8.1-5).

Neste domingo, quando encerramos nossa campanha de Natal, Presente que Serve, damos graças a Deus pelo privilégio que nos concede de experimentar um pouco do seu coração amoroso e doador, contribuindo para a promoção da justiça e da paz, abençoando pessoas e ajudando cada uma delas a olhar para o céu com gratidão e louvor, reconhecendo que Deus jamais delas se esqueceu. A campanha terminou, mas o caminho do amor e da doação se estende por toda a vida. Agradecemos a Deus o mistério da graça, que nos possibilita estar do lado que experimenta a maior felicidade: a graça de dar, contribuir, repartir, compartilhar e doar, com alegria e generosidade sem medida. Respondemos a essa graça, não apenas repartindo o que temos e o que somos, mas agindo de maneira digna e responsável, para que a felicidade de dar se estenda a muitos, até que os pobres não os tenhamos mais por perto, naquele dia quando o reino de Deus derramará sobre todos nós o seu shalom: abundância de tudo para todos, e a terra se encha do conhecimento da glória de Deus como as águas cobrem o mar.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Servir: privilégio de poucos

Por Éd Rene

É natural ao coração humano a busca de conforto, status, poder e tudo quanto vem agregado a estas realidades. Tiago, João e sua mãe foram até Jesus solicitar tais privilégios na consumação do reino de Deus. Jesus não disse nem que sim, nem que não, mas aproveitou para reforçar que o reino de Deus é reino de servos e, portanto, os servos são os verdadeiros governantes do mundo. No reino de Deus, o privilégio e o ônus de governar não é das "pessoas importantes", mas dos servos, até porque, governar é servir. No reino de Deus, a maneira de governar não é exercendo domínio sobre os governados, mas servindo os governados, até porque, governar é servir. Na lógica do reino de Deus, o oposto também é verdadeiro: servir é governar.

Para servir é necessário sair da zona de conforto, isto é, fazer o indesejado, dedicar tempo para tarefas pouco atraentes, assumir responsabilidades desprezadas pela maioria, fazer "o trabalho sujo", enfim fazer o que ninguém gosta de fazer. Para servir é necessário vencer o orgulho, isto é, se dispor a ser tratado como escravo, ter os direitos negligenciados, ser desprestigiado, sofrer injustiças, conviver com quase nenhum reconhecimento, enfim, não se deixar diminuir pela maneira como as pessoas tratam os que consideram em posição inferior. Para servir é necessário abrir mão dos próprios interesses, isto é, pensar no outro em primeiro lugar, ocupar-se mais em dar do que em receber, calar primeiro, perdoar sempre, sempre pedir perdão, enfim, fazer o possível para que os outros sejam beneficiados ainda que ás custas de prejuízos e danos pessoais.

Não é por menos que em qualquer sociedade humana existem mais clientes do que servos. Servir não é privilégio de muitos. Servir é para gente grande. Servir é para gente que conhece a si mesma, e está segura de sua identidade, a tal ponto que nada nem ninguém o diminui. Servir é para gente que conhece o coração das gentes, de tal maneira que nada nem ninguém causa decepção suficiente para que o serviço seja abandonado. Servir é para quem conhece o amor, de tal maneira que desconhece preço elevado demais para que possa continuar servindo. Servir é para quem conhece o fim a que se pode chegar servindo e amando, de tal maneira que não é motivado pelo reconhecimento, a gratidão ou a recompensa, mas pelo próprio privilégio de servir. Servir é para gente parecida com Jesus. Servir é para muito pouca gente.

A comunidade cristã - a Igreja, pode e deve ser vista, portanto, como uma escola de servos. Uma escola onde aprendemos que somos portadores do dna de Deus, dignidade que ninguém nos pode tirar. Uma escola onde aprendemos que, por mais desfigurado que esteja, todo ser humano carrega a imagem de Deus. Uma escola onde aprendemos a amar, e descobrimos que, se "não existe amor sem dor", jamais se ama em vão. Uma escola onde aprendemos que "mais bem aventurada coisa é dar do que receber".

Servir é mesmo privilégio de poucos. De minha parte, preferiria ser servido. Mas aí teria de abrir de mão do reino de Deus. Teria de abrir mão de desfrutar do melhor de mim mesmo. Teria de abrir mão de você. Definitivamente, me custaria muito caro. Nesse caso, continuo na escola.

Liderança não é para qualquer um

Por Éd Rene

O exercício da liderança é um privilégio e uma responsabilidade de poucos. Usando nossa linguagem teológica, as "pessoas dons" (Efésios 4: 11) são sempre em número muito menor do que as "pessoas com dons" (Efésios 4: 12).

As pessoas dons são responsáveis pela eficácia (fazer as coisas certas) e a eficiência (fazer as coisas da maneira certa) da organização. Quando você tem um problema de liderança, você tem um problema de líderes, e não de liderados. Espera-se, portanto, que os líderes sejam líderes, isto é, tenham no mínimo, uma visão clara do futuro para onde conduzem seus liderados, uma sensibilidade aguçada para que este futuro seja fruto dos sonhos e anseios dos liderados e um senso de responsabilidade para com a organização/organismo, pois os líderes não são servos dos liderados, mas servos da visão comum. Servir os liderados é a maneira como os líderes servem à visão, e não sua finalidade essencial.

Diante destas responsabilidades, acredito que ninguém será capaz de exercer satisfatoriamente a função de liderança, sem o desenvolvimento de pelo menos três capacidades.

A capacidade de conviver com a solidão. Líderes são líderes porque enxergam, percebem, sentem, sabem, estão dispostos a sacrifícios, possuem paixão diferenciados em relação aos liderados. Um líder na média dos seus liderados é um liderado que está no lugar errado, a saber, ocupando a posição de líder. Águias não voam em bandos.

A capacidade de tomar decisões impopulares. John Kennedy disse que o segredo do fracasso é "tentar agradar todo mundo". O líder deve sempre tentar construir consenso, mas deve ter coragem para tomar decisões e assumir responsabilidades. Caso contrário, será um "facilitador de discussões", e não um líder de fato.

A capacidade de conviver com críticas. Como se diz no popular, "nem Jesus Cristo agradou todo mundo". Nesse caso, uma vez que o líder se posiciona, assumindo sua responsabilidade de levar todo mundo rumo ao bem comum, certamente contrariará interesses particulares, e conseqüentemente será alvo de palavras duras e imerecidas. Sempre.

Eis as razões porque o exercício da liderança não é para qualquer um.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Como posso descobrir a minha vocação?

por Ed René Kivitz


"Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos. Mas a manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil. Mas um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, repartindo particularmente a cada um como quer." 1Corintios 12.4-7,11

Você sabe que tem uma vocação quando seu conjunto de talentos, capacidades e habilidades está identificado. Os conceitos de inteligências múltiplas (ver de Howard Gardner) e de dons e ministérios indicam que todas as pessoas são dotadas de recursos para realizações úteis. Quando somos conscientes dos recursos que nos são inerentes ou que recebemos e ou adquirimos ao longo da vida, podemos discernir melhor a contribuição que podemos dar para o bem comum.

Você sabe que tem uma vocação quando seu conjunto de talentos, capacidades e habilidades está disponibilizado de forma organizada. Contribuições pontuais e ações eventuais não são suficientes. A vocação é exercida numa rotina de atividades por meio das quais canalizamos nossos recursos para suprir necessidades específicas das pessoas.

Você sabe que tem uma vocação quando sua contribuição independe de remuneração. Na verdade, quando você está inclusive disposto ou disposta a pagar para continuar a fazer o que faz. Paulo de Tarso era fazedor de tendas por ocupação e apóstolo por vocação. Sua atividade apostólica não dependia de remuneração, e inclusive era, de quando em vez, auto-financiada.

Você sabe que tem uma vocação quando existe uma necessidade do/no mundo a respeito da qual você se sente responsável. Pode ser um grupo social, um povo, uma instituição, uma causa, enfim, algo pelo que você se sente impelido ou impelida a fazer alguma coisa.

Você sabe que tem uma vocação quando aquilo que você faz exige mais do que mera intuição, exige capacitação. Para exercer uma vocação você deve se comprometer a estudar, se aperfeiçoar e se desenvolver de modo a fazer cada vez melhor e com mais excelência, eficiência e eficácia aquilo que faz.

Você sabe que tem uma vocação quando as coisas que acontecem ao redor de sua atuação se explicam apenas pela ação do Espírito Santo. O chamado divino para uma tarefa específica se faz sempre acompanhar dos recursos divinos para sua concretização e sucesso.

Você sabe que tem uma vocação quando recebe constante feedback (retorno) de pessoas que agradecem e glorificam a Deus pela sua vida. O critério último de uma vocação não depende de quanto você gosta do que faz, mas de quanto as pessoas são abençoadas pela sua contribuição.

Você sabe que tem uma vocação quando, ao final de um artigo a respeito de vocação, você não tem um monte de interrogações na cabeça. Como na conversa em que um jovem pergunta ao pastor como saber se está apaixonado, e o pastor responde "Não sei, mas sei que você não está". Quem precisa perguntar "como posso descobrir minha vocação?", ainda não a descobriu - não significa que não tem uma vocação, mas que ainda não sabe qual é.

Quase todo o mundo

por Ed René Kivitz


A afirmação de que Deus tem um coração que abraça o mundo não pode ser confundida com a afirmação de que Deus é amigo de todo mundo. O poeta bíblico diz que somente as pessoas que temem a Deus desfrutam de sua intimidade (Salmo 25.14). Jesus deixou claro que existe gente do lado de fora das fronteiras do reino de Deus (Mateus 18.3; Marcos 4.11), e que somente alguns poucos podem desfrutar de sua amizade (João 3.3-8; João 15.14,15). Jesus não acreditava em todos os que acreditavam nEle (João 2.23-25). Isso significa que existe uma distância entre a ação amorosa e graciosa de Deus que “faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos” (Mateus 5.45) e a abertura de Deus para uma relação de amizade e intimidade com as pessoas, pois não são poucos os que vivem em inimizade contra Deus (1 João 2.15; Tiago 4.4) e são inimigos da cruz de Cristo (Filipenses 3.18,19).

Está claro, portanto, que os seguidores de Jesus devemos o respeito à dignidade intrínseca a todo ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, o que nos exige a atitude amorosa, generosa, misericordiosa e solidária, inclusive em relação aos que “não são contados entre os nossos”, pois Jesus ensinou: “ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus (Mateus 5.43,44). Mas isso não implica a ingênua desconsideração ao fato de que somos ovelhas em meio aos lobos (Lucas 10.3), imersos num mundo que nos odeia assim como odiou Jesus Cristo, nosso Senhor (João 15.18-25).

O batismo nas águas e a celebração da ceia em memória de Jesus Cristo servem como atos dramáticos por meio dos quais uma pessoa se apresenta fazendo afirmações categóricas e assumindo compromissos públicos. No batismo, testemunha algo como: “Houve uma mudança em mim; abandonei minha inimizade contra Deus, abri meu coração ao seu amor e me submeti absolutamente à sua vontade. Eu nasci de novo”. Na ceia memorial, ao repartir o pão e o vinho na comunidade, afirma: “Meu coração e minha consciência continuam comprometidos com o sonho de fraternidade e amor da tradição ensinada por Jesus. Reafirmo meu compromisso de submissão a Jesus Cristo, Senhor da minha vida, comunhão com sua igreja, e engajamento na missão de sinalizar o reino de Deus todo tempo, em todo lugar, através de tudo o que faço”.

Brian McLaren observa que a afirmação de Jesus “quem não é contra vocês é a favor de vocês” argumenta contra as exclusões mesquinhas e o espírito exclusivista e sectário, da mesma forma que a afirmação “aquele que não está comigo é contra mim” argumenta contra uma inclusão ingênua. “O propósito do Reino de Deus”, diz ele, “é o de ajuntar, de incluir, de acolher todos aqueles que estiverem desejando (crianças, prostitutas, coletores de impostos) ser reconciliados com Deus e uns aos outros. No entanto, se o Reino incluísse pessoas que rejeitassem esse propósito, iria ficar dividido contra si mesmo, e seria arruinado”. Conclui afirmando que o reino de Deus está acessível a todos, mas “para que seja verdadeiramente inclusivo, o Reino precisa excluir os que são exclusivistas; para que seja verdadeiramente reconciliador, o reino não pode se reconciliar com aqueles que rejeitam a reconciliação; para que alcance seu propósito de unir as pessoas, não pode unir aqueles que espalham. O Reino de Deus tem um propósito, e esse propósito não se ajusta ao gosto de cada um”. (Ver A mensagem secreta de Jesus, de Brian McLaren, Thomas Nelson Brasil, Capítulo 18: As fronteiras do Reino).

Deus tem um coração que abraça o mundo. Mas é fato que nem todo o mundo deseja seu abraço.

A grande ruptura

por Ed René Kivitz


"Deus não habita em templos feitos por mãos de homens". Estas palavras de Estevão, o primeiro mártir cristão, explicita a grande ruptura entre Moisés e Jesus Cristo.

Moisés representa o Pacto feito entre Yahweh e o povo hebreu, baseado na Torah. Jesus Cristo é o Filho Unigênito de Yahweh, a exata expressão de Yahweh, não somente aquele em quem habita a plenitude de Yahweh, mas também a revelação final e definitiva de Yahweh, que, tendo falado muitas vezes e de muitas maneiras, desde Moisés e os profetas, hoje nos fala por ele, Jesus Cristo, o único a quem devemos ouvir.

Por trás do primeiro Pacto, em Moisés, está o propósito de Yahweh, revelado no chamado de Abraão: abençoar todas as famílias da Terra. Para cumprir seu propósito, Yahweh chama um homem e dele suscita uma nação. Concede a esta nação a Torah, expressão de vontade em dimensões religiosa, ética e política. Por meio da estrutura religiosa que orienta o povo hebreu, vai revelando a si mesmo: a Lei cerimonial, o ministério sacerdotal, o cordeiro pascal, o sábado, o Tabernáculo, a figura do Rei e, principalmente, o Templo.

Idealizado por Davi e construído por Salomão, o Templo concentrava toda a estrutura religiosa de Israel. Dividido em três partes: o átrio, o lugar santo e o lugar santíssimo, ou "santo dos santos". O Templo, e mais especificamente o "santo dos santos", que recebia a visita apenas do sumo sacerdote e somente uma vez por ano, figurava a separação entre Deus e os homens: a glória de Deus era inacessível aos pecadores, que, representados pelo sumo sacerdote, ofereciam sacrifícios para perdão e bênção.

Estevão é acusado de perverter Moisés, a Lei e o Templo. De acordo com a lógica da tradição religiosa judaica, acusações legítimas. Não somente Estevão, mas também todos os apóstolos, estavam ensinando que Deus havia celebrado um novo Pacto: não mais em Moisés, mas em Jesus Cristo; não mais no sangue dos animais sacrificados, mas no sangue de Jesus Cristo, que nos purifica de todo pecado; não mais na Lei, mas na graça; não mais centralizado no Templo de Jerusalém, erigido sobre o Monte Sião, mas num templo de pedras vivas, construído nos três dias que delimitam a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. De fato, a mensagem dos seguidores de Jesus Cristo, e Estevão era um deles, tornava obsoleta a estrutura Moisés-Lei-Templo.

Mas, na verdade, a mensagem de Estevão era a perfeita consumação do propósito de Deus, estabelecido desde antes da fundação do mundo. Do particular para o universal: de um povo, o hebreu, para todas as famílias da terra; dos animais sacrificados para sua própria vida, doada em seu Filho; da Lei para o seu Espírito Santo derramado sobre toda a carne; do Templo para todo o universo, até que todos soubessem de fato o que os poetas gregos apenas intuíam: em Deus "vivemos, nos movemos e existimos".

"Deus não habita em Templos feitos pelas mãos dos homens" significa, na verdade, que Deus não habita em nada feito pelas mãos dos homens. Os homens e as obras de suas mãos é que se sustentam em Deus. O movimento deflagrado por Jesus na Galiléia, ano 30, foi, de fato, uma grande ruptura, não apenas com a tradição do judaísmo hebreu, mas com todas as maneiras como, ao longo da história, os homens intuíram Deus e como com Ele se relacionar. O Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo é singular.

domingo, 29 de novembro de 2009

A graça barata e a graça preciosa

por Ed René Kivitz


Nascido em Breslau, na Alemanha, em 4 de fevereiro de 1906, Dietrich Bonhoeffer foi teólogo, pastor luterano e um dos mentores e signatários da Declaração de Bremen, quando, em 1934, diversos pastores luteranos e reformados formaram a Bekennende Kirche (Igreja Confessante), rejeitando desafiadoramente o nazismo: "Jesus Cristo, e não homem algum ou o Estado, é o nosso único Salvador".

Seus últimos dois anos foram vividos na Prisão Preventiva do Exército em Tegel, até que, em 9 de abril de 1945, pouco tempo depois do suicídio de Adolf Hitler e apenas três semanas antes que as tropas aliadas libertassem o campo, foi enforcado em virtude de seu engajamento na resistência anti-nazista.

Em sua obra mais famosa, escrita no período de ascensão do nazismo, intitulada "Discipulado", Bonhoeffer desenvolve o conceito de "graça barata e graça preciosa", uma das mais belas páginas da teologia protestante. Eis um pequenino trecho:

"A graça barata é a graça que nós dispensamos a nós próprios. A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado.

A graça preciosa é o tesouro oculto no campo, por amor do qual o homem sai e vende com alegria tudo quando tem; a pérola preciosa, a qual o comerciante se desfaz de todos os seus bens para adquiri-la; o governo régio de Cristo, por amor do qual o homem arranca o olho que o escandaliza; o chamado de Jesus Cristo, o qual, ao ouvi-lo, o discípulo larga as suas redes e o segue.

A graça preciosa é o evangelho que há que se procurar sempre de novo, o dom pelo qual se tem que orar, a porta à qual se tem que bater.

A graça é preciosa porque chama ao discipulado, e é graça por chamar ao discipulado de Jesus Cristo; é preciosa por custar a vida ao homem, e é graça por, assim, dar-lhe a vida; é preciosa por condenar o pecado, e é graça por justificar o pecador. Essa graça é sobretudo preciosa por tê-la sido para Deus, por ter custado a Deus a vida de seu Filho - "fostes comprados por preço" - e porque não pode ser barato para nós aquilo que para Deus custou caro. A graça é graça sobretudo por Deus não ter achado que seu Filho fosse preço demasiado caro a pagar pela nossa vida, antes o deu por nós. A graça preciosa é a encarnação de Deus.

A graça preciosa é a graça considerada santuário de Deus, que tem que ser preservado do mundo, não lançado aos cães; e é graça como palavra viva, a palavra de Deus que ele próprio pronuncia de acordo com seu beneplácito. Chega até nós como gracioso chamado ao discipulado de Jesus; vem como palavra de perdão ao espírito angustiado e ao coração esmagado. A graça é preciosa por obrigar o indivíduo a sujeitar-se ao jugo do discipulado de Jesus Cristo. As palavras de Jesus: ´O meu jugo é suave e o meu fardo é leve´ são expressão da graça ... A graça e o discipulado permanecem indissoluvelmente ligados".

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Quebrando paradigmas

por Ed René Kivitz


Os cristãos não têm mais templos, nem sacerdotes que oferecem sacrifícios a um Deus ultrajado em sua justiça, e não precisam guardar dias sagrados ou observar rituais para a purificação pessoal e veneração a Deus.
O apóstolo Pedro é porta voz da doutrina do Novo Testamento a respeito do culto ao ensinar que aqueles que estão em Cristo são semelhantes a pedras vivas, edificados como casa espiritual, para sacerdócio santo, a fim de que ofereçam sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por meio de Jesus Cristo (1 Pedro 2.5). O único sacrifício espiritual agradável a Deus que um cristão pode oferecer é a sua própria vida: Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional (gr. logiken: genuíno, legítimo, autêntico). Em outras palavras, se a igreja, em Cristo, é templo de pedras vivas, cada cristão é um sacerdote, e sua própria vida, o sacrifício, então o culto ganha outra dimensão.
Este novo conceito de culto traz duas implicações. A primeira é que “a vida é um culto”, e nesse caso, “quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (1 Coríntios 10.31). O que costumamos chamar de louvor, com pessoas reunidas para cânticos, é um momento no todo da adoração, e não a totalidade de nossa devoção a Deus.
A segunda implicação é que apresentar a vida como um sacrifício vivo a Deus, necessariamente desemboca no serviço. Russell Shedd diz que “o corpo e a mente não são sacrificados num altar, segundo o modo da antiga aliança, mas incorporados no serviço ativo dentro do corpo de Cristo, a Igreja. Os dons distribuídos pelo Espírito Santo são um sinal claro da aprovação de Deus aos sacrifícios vivos que lhe foram oferecidos”.
Reuniões para louvor e cânticos, muito embora justificadas pelo Novo Testamento, eram, entretanto, um parêntesis na vida de serviço sacerdotal da Igreja no mundo, e não a totalidade de sua dedicação a Deus. Os cristãos não prescindem dos grandes ajuntamentos para louvor e edificação… mas a celebração não encerra a totalidade da vivência da fé, sendo, de fato, apenas uma de suas partes… sendo inclusive muito reducionista do amplo sentido de servir a Deus.
A igreja de Jesus é, portanto, desafiada pelo Novo Testamento, a viver além dos limites do templo, do domingo, do culto e do clero. Muito provavelmente nada disso seja novidade. O problema é que nossa prática eclesiástica não acompanha nossa lucidez teológica... a igreja não se vê mais como um instrumento nas mãos de Deus para “fazer convergir em Cristo todas as coisas, tanto as que estão no céu quanto as que estão na terra” (Efésios 1.10). Isto é, a igreja perde o sentido de missão, pois se o Senhor Jesus quer exercer sua autoridade no universo criado por meio da igreja, ela não pode permanecer intra-muros... O maior desafio pastoral contemporâneo é pegar os cristãos reunidos no templo, no domingo, para o culto onde o clero desempenha sua performance, e despejá-los na segunda-feira para a vivência da fé, onde quer que se encontrem. Deixar que a igreja se compreenda como “comunidade reunida para o culto” é uma completa distorção dos propósitos de Deus.

O melhor consultor financeiro

por Ed René Kivitz

O dinheiro não vem com manual de instruções. Mas Jesus falou muita coisa para orientar quem deseja uma vida financeira saudável. A primeira coisa e mais importante de todas foi a definição de Jesus para dinheiro. Jesus chamou o dinheiro de Mamom: "Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e a Mamom" (Mateus 6.24; Lucas 16.13). Isso significa que para Jesus o dinheiro é um poder, muito parecido com uma divindade que exige adoração, submissão e lealdade, e determina como seus adoradores / escravos devem viver.
O senso comum utiliza o comentário do apóstolo Paulo para dizer que o dinheiro em si não é o problema, pois apenas "o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males" (1 Timóteo 6.10). Mas Jesus adverte que o dinheiro não é neutro, mas algo como um organismo vivo, com uma força sedutora quase irresistível, quase um demônio, na verdade, uma potestade: uma coisa que funciona como se fosse uma pessoa. Alguém sugeriu que "Mamom é dinheiro elevado à categoria de deus", mas acredito que todo dinheiro é Mamom: um bicho que deve ser domado e controlado com as rédeas curtas da autoridade espiritual de Jesus.
Jesus ensina que o dinheiro é uma riqueza menor e falsa, própria de um sistema social injusto e opressivo, organizado contra os valores e interesses do reino de Deus que visa sempre a justiça e paz (Lucas 16.9-13). O dinheiro é, portanto, considerado por Jesus um dos maiores tropeços para a fidelidade a Deus e ao reino de Deus, já que "é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus" (Mateus 13.22; Lucas 12.13-21; 18.18-25), e por essa razão deve ser tratado com o cuidado de quem manuseia nitroglicerina: qualquer movimento em falso a coisa explode na cara.
Jesus recomenda enfaticamente que você se esforce para domar o dinheiro antes que ele se torne o senhor do seu coração. As sugestões de Jesus são simples e desafiadoras. A primeira coisa a fazer é se livrar de todo e qualquer dinheiro ganho desonestamente: restituir a quem de direito ou doar aos pobres (Lucas 19.1-10). A segunda proposta de Jesus é praticar generosidade. O dinheiro funciona com a lógica da conquista e do mérito - "quem não tem competência não se estabelece", e da dominação - "quem paga, manda". A doação generosa - "fazer o bem sem ver a quem", quebra o encanto desse tirano chamado Mamom (Lucas 10.25-37). A terceira recomendação de Jesus é transportar o dinheiro da terra para o céu: transformar riquezas efêmeras em riquezas eternas, que em termos práticos significa que pessoas, caráter, dignidade, justiça valem mais que coisas e dinheiro (Mateus 6.19-21; Lucas 16.9-12). Finalmente, Jesus recomenda que o dinheiro seja colocado em circulação para gerar riquezas coletivas: investir, fazer negócios, movimentar a ciranda das riquezas para beneficiar o maior número possí­vel de pessoas (Mateus 25.14-30; Lucas 16.19-31; 19.11-27).
Tudo quanto Jesus falou a respeito de dinheiro deriva de sua compreensão básica - que para variar contraria absolutamente o senso comum (Mateus 6.19-34). Jesus acredita que não é o dinheiro que segue o coração, é o coração que segue o dinheiro. Isto é, se você vive para multiplicar dinheiro, seu coração vai tomando a forma de cifrão, e aos poucos você vai ficando parecido com Mamom que se cobre de inveja, cobiça e ansiedade - pretensão de controlar o incontrolável. Mas se a sua preocupação é com o reino de Deus e a sua justiça, pode dormir o sono dos filhos do céu, sob os cuidados do Deus que veste as flores e cuida dos passarinhos.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Os cristãos discípulos e os discípulos cristãos

Ed Rene

A palavra discípulo ocorre 269 vezes no Novo Testamento. A palavra cristão ocorre apenas uma. Fica absolutamente claro que os seguidores de Jesus eram identificados como discípulos. Isto é, discípulo era o substantivo. A palavra cristão, que significa "pequeno Cristo" era um adjetivo do discípulo. Podemos deduzir que todo cristão é discípulo, mas nem todo discípulo é cristão. Para melhor compreender isso é necessário saber o que significa ser um discípulo.Jesus cresceu na Galiléia, uma região caracterizada pela prática do judaísmo ortodoxo, que se dedicava a estudar, viver e ensinar a Torah. Por volta dos seis anos os meninos ingressavam na Bet Sefer - Casa do Livro, começavam a aprender a Torah, e aos quatorze já deveriam ter decorado todo o Velho Testamento. Somente os melhores entre os melhores continuavam a estudar a Torah após os quinze anos, enquanto os demais eram iniciados nos negócios da família ou eram encaminhados a outras atividades profissionais.Os que eram conduzidos à Bet Midrash - Casa de Estudo, eram chamados talmidim e ficavam sob os cuidados de um rabino. Aquele era um vestibular rigoroso. Os rabinos avaliavam criteriosamente cada candidato em busca da resposta a uma pergunta nada simples: será que um dia esse menino será igual a mim? Um talmidim deixava para trás seu pai e sua mãe, os negócios da família, sua sinagoga e seus amigos para se entregar de corpo e alma a seguir seu rabbi. O objetivo final não era apenas aprender o que o rabino sabia ou dominar o que o rabino sabia fazer. O objetivo de um talmidim era se tornar igual ao seu rabbi.Jesus também tinha seus talmidim - discípulos, seguidores. Foram chamados dentre os meninos reprovados no vestibular. Cuidavam dos negócios da família, como Pedro, André, Tiago e João, que eram pescadores, ou se dedicavam a outras atividades, como Mateus, que era cobrador de impostos.Atos 11.26 diz que foi em Antioquia que os talmidim de Jesus foram, pela primeira vez, chamados cristãos. Foram necessários mais de dez anos para que os primeiros discípulos de Jesus fossem confundidos com ele e recebessem o nome dele como apelido. O objetivo estava sendo alcançado: os talmidim de Jesus estavam se tornando parecidos com ele.Para que alguém se torne parecido com Cristo deve ser primeiro um seguidor de Jesus: antes de ser um cristão, você tem que ser um discípulo, pois se é verdade que nem todo discípulo é cristão, também é verdade que todo cristão é discípulo.Pelo menos deveria ser assim. Mas hoje as coisas são diferentes. O substantivo virou adjetivo e vice-versa: há cristãos que não são discípulos, isto é, há muita gente que se diz cristã, mas não está disposta a seguir os passos de Jesus, gente que acredita ser possível se tornar semelhante a Jesus sem se deixar cobrir pela poeira dos seus pés. Isso quando existe consciência de que ser cristão é seguir a Jesus com o objetivo de, um dia, ser como Cristo, um pequeno Cristo, um cristão. Jesus Cristo não é apenas o caminho, é também o destino: o destino Cristo ao final do caminho Jesus.

As casas e as verdades

Ed Rene
Assim como uma casa se faz com tijolos, mas uma pilha de tijolos não é uma casa, também uma verdade cristã se faz com versículos – mas um amontoado de versículos não equivale necessariamente a uma verdade bíblica.
Era uma manhã ensolarada e a caminhada já se estendia. A cidade estava logo ali. Antes da chegada, a fome. E depois da fome, uma figueira. Jesus se aproxima da planta esperando colher algum fruto. Mas encontrou apenas folhas. Não teve dó nem piedade – amaldiçoou a figueira, e deixou seus discípulos assombrados. Depois deu uma bronca em todo mundo e vaticinou: quem tiver fé, ainda que do tamanho de um grão de mostarda, vai mandar esse monte sair do lugar e ele vai obedecer. No meio dessa coisa toda, Jesus ainda encontra tempo para, literalmente, chutar o balde dos comerciantes do templo, que haviam transformado a casa do Pai em covil de ladrões.O que uma cidade, uma figueira, um monte, um templo e a fé estão fazendo juntos nesta cena? Aliás, observe. Caso não tenha percebido, eles estão juntos. Não são episódios estanques, separados: o da figueira, o do templo e o aforismo sobre a fé. São peças de um quebra-cabeças que, montadas, deixam claro como o sol do meio-dia o que Jesus estava querendo dizer. Já, já, a gente chega lá. Mas quero contar outra história. Certa ocasião, Cristo se deparou com um homem dominado por espíritos malignos. “Legião”, disseram, ao responder qual era seu nome. Diante do Filho do Deus Altíssimo, os demônios pediram que Jesus os deixasse entrar nos porcos, perto de dois mil. Jesus consentiu. Em seguida, os porcos se lançaram ao lago de Genezaré e se afogaram. O pessoal da região ficou louco da vida com Jesus e pediu que ele fosse embora daquele lugar.Não tenho dúvidas de que você já ouviu e leu centenas de meditações baseadas nestes dois episódios da caminhada de Jesus com seus discípulos. Provavelmente, alguém já disse que seus problemas são como aquele monte citado pelo Mestre, e que podem ser superados pela fé. Não importam quais sejam seus embaraços, seus problemas, suas angústias e as razões do seu sofrimento; basta ter fé. Afinal, a fé remove montanhas, isto é, com fé a gente vence qualquer dificuldade. Também deve ter ouvido a respeito da autoridade de Jesus sobre os espíritos malignos, o que é absolutamente verdadeiro. E não é pouca autoridade, não. O Senhor deu conta de expulsar dois mil demônios de um homem de uma vez só. Eles fizeram fila e saíram um de cada vez. Então, imagine o que Cristo não é capaz de fazer com um demoniozinho tupiniquim! Principalmente, no palco de uma igreja evangélica. Com base na história do gadareno e sob a intercessão das mãos estendidas dos fiéis, os pastores se enchem de coragem e repetem sua fórmula infalível: “Sai desse corpo que não te pertence”.Será que estes episódios se prestam apenas a ensinar a respeito do poder da fé para vencer dificuldades na vida e acerca da autoridade de Jesus sobre o diabo e seus asseclas? Ou haveria algo mais nas entrelinhas das narrativas? Fico com a segunda alternativa: os Evangelhos – decerto, a Bíblia toda – contêm linguagem cifrada, códigos secretos que comunicam verdades profundas, perfeitamente percebidas pelos circunstantes, porém raramente alcançadas pelos leitores contemporâneos. Mas, e a figueira, a cidade, o templo? O que fazer com essas figuras? Vamos lá. Primeiro, o caso da figueira. Sabemos que essa árvore é um símbolo que identifica a nação de Israel. Assim também a cidade, o templo, e o monte. A cidade é Jerusalém, onde está o Templo de Salomão, no monte Sião. Jesus faz a limpa, cumprindo a profecia de Malaquias – “Logo virá ao seu templo o Senhor, a quem vós buscais” – e a de Zacarias: “E, naquele dia, não haverá mais mercadores na casa do Senhor dos exércitos”.Jesus deixa claro que Israel é uma figueira estéril, sem frutos, o que é demonstrado pela profanação do Templo e deturpação de sua religião. A nação é amaldiçoada; Sião deixará de ser o centro da revelação de Deus e Israel será preterida por um povo com quem Deus celebrará uma nova aliança – em Jesus, e não mais em Moisés: “É evidente que pela lei ninguém será justificado diante de Deus, porque o justo viverá da fé”.A fé que remove montanha não é a fé individual, aquela porção de fé de cada crente, mas coletiva, do povo da nova aliança: “Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos crentes. Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e encerrados para aquela fé que se havia de manifestar. De maneira que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos justificados. Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio. Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Sabei, pois, que os que são da fé são filhos de Abraão”. O monte removido pela fé não é a dificuldade particular de cada crente, mas Sião, o monte santo, que não se abala – ou melhor, não se abalava, até que Israel rejeitou o Messias, que conforme a Escritura, veio para os seus, mas não foi recebido por eles. Em Cristo, a Igreja – o povo da fé – recebe todos os títulos que pertenciam a Israel: “Geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido”. A fé remove o Monte Sião. Portanto, da próxima vez que alguém lhe disser que a fé remove montanhas, diga que já removeu. Sião não é mais o que era. A figueira secou. E nasceu a Igreja, povo de Deus, povo da fé.A mesma coisa acontece com a história do endemoninhado gadareno. Os espíritos imundos chamam a si mesmos de Legião, numa clara e explícita referência ao poderio militar romano. Assim como os opressores egípcios se afogaram no Mar Vermelho, quando com mão forte Yahweh libertou Israel pelas mãos de Moisés, também os opressores romanos estavam se afogando no Mar da Galiléia, sob as ordens daquele que ousou pronunciar “ouvistes o que foi dito por Moisés; eu, o Messias, porém, vos digo”.Da próxima vez que alguém lhe disser que Jesus é maior que os demônios, concorde. Mas acrescente – ele é também maior que Moisés. E maior que o Egito, a Babilônia, a Pérsia. É também maior que Roma. Maior que os espíritos malignos que agem nas entranhas do mundo, que jaz no maligno. E, porque maior que tudo e todos, é Senhor e libertador, aqui e agora, ali e além; Rei de um reino que não terá fim.Assim como uma casa se faz com tijolos, mas uma pilha de tijolos não é uma casa, também uma verdade cristã se faz com versículos – mas um amontoado de versículos não equivale necessariamente a uma verdade bíblica. Uma casa é resultado de um processo inteligente de ordenação harmoniosa de tijolos, todos agrupados conforme determinado projeto. Assim também, a verdade do Evangelho possui sua lógica. Fora dessa lógica intrínseca, versículos não passam de tijolos.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

A tirania da felicidade

Ed Rene

Para quem acredita que tem a obrigação de ser feliz
Vivemos hoje o que se poderia chamar "a tirania da felicidade". Ser feliz virou uma obrigação. O consenso diz que a felicidade é o objetivo maior da humanidade. Pascal Bruckner, ensaísta francês, autor de Euforia perpétua (Rio de Janeiro, DIFEL, 2002) analisa que esse fenômeno ocorreu "depois de 1968, quando se fez uma revolução em nome do prazer."[i] Desde então, a felicidade, "mais do que o dinheiro, é a nova ostentação dos ricos. Eles estão na mídia e exibem seus carros de luxo, sua vida amorosa extraordinária, seu sucesso social, financeiro ou mesmo moral, quando colaboram com instituições beneficentes. A felicidade virou parte da comédia social."[ii] Swami Adiswarananda, monge da Ordem Ramakrishna, atualmente dirigente do Ramakrishna-Vivekananda Center of New York, denuncia nossa sociedade dizendo que "a felicidade é o objetivo da busca eterna e universal que vem ocupando a mente humana desde os primórdios da criação. As pessoas podem diferir em suas perspectivas políticas e religiosas, filosofias de vida, perfis psicológicos, cultura e raça, mas todos, sem exceção, querem ser felizes. A felicidade é a meta do pobre e do rico, do erudito e do ignorante, do santo e do pecador, do ateu e do crente, do ascético e do indulgente. É por causa da felicidade que aspirantes espirituais oram, trapaceiros trapaceiam, açambarcadores açambarcam, caridosos entregam-se à caridade, bêbados bebem, ladrões roubam e penitentes se arrependem. Almejando felicidade uns se casam, outros se divorciam, alguns cometem suicídio e outros se tornam homicidas. E no entanto, a perseguição à felicidade resulta numa tentativa caótica, absurda, infrutífera. Ninguém tem certeza de como alcançá-la. Nenhum ramo de estudo nos trouxe qualquer conhecimento a respeito do segredo da felicidade. A religião enfatiza a salvação e a filosofia, a busca da verdade. Os moralistas falam a respeito do dever e os psicólogos nos pedem que enfrentemos e convivamos com a infelicidade. Os cientistas pouco se importam com nossos sentimentos e os economistas dão valor tão-somente à riqueza e prosperidade. Nenhum deles se dedica ao problema da felicidade. Em busca da felicidade as pessoas freqüentemente se comportam de forma estranha. Alguns ficam felizes quando os outros estão felizes, alguns são felizes quando os outros são infelizes e existem até mesmo aqueles que são felizes quando eles próprios são infelizes. Uns têm esperança de comprar a felicidade enquanto outros há que tentam usurpá-la do próximo. Há aqueles que buscam alcançar a felicidade através do domínio, pelo poder; outros, no apego às coisas. Desta forma, estamos todos, constantemente, perseguindo a felicidade ao invés de sermos felizes. Não “admira, portanto, que nasçamos chorando, vivamos nos lamuriando e morramos frustrados.” A sociedade contemporânea vive à luz de um único mandamento: "Serás feliz", que traduzido é "buscarás estar satisfeito com tudo o tempo todo". Este único mandamento se decompõe em três outros sub-mandamentos.

#1 Eliminarás todo sofrimento • Negarás a dor • Fugirás do desconforto • Evitarás os fracassados • Rejeitarás tudo quanto não tem prazer

#2 Satisfarás todos os teus desejos • Conquistarás o máximo • Buscarás o prazer acima de tudo • Não passarás vontade • Correrás atrás de todos os teus sonhos • Não te sacrificarás por nada e ninguém

#3 Realizarás o pleno potencial • Serás sempre o melhor • Viverás sempre apaixonado • Terás filhos perfeitos • Prosperarás sempre • Andarás sobre as águas Em síntese, "farás de tudo para apareceres na Revista Caras", ou se preferir, já que esta possibilidade é distante para a maioria de nós, "viverás como se estivesses no mundo de Caras".
Para que isso seja possível, "construirás uma imagem de sucesso". Isso mesmo, pois a imagem é a única alternativa que nos resta. Por que? Porque em nossa sociedade "o simulacro é vendido como verdadeiro, a representação como apresentação. Aquilo não está presente, está representado e produz ansiedade, frustração e desespero".[iii] A felicidade conforme ostentada hoje nas revistas, telenovelas, talkshows e programas de auditório, é uma farsa. Colocando os pés no chão, encontramos o conceito judaico-cristão da bem-aventurança, a expressão bíblica que mais se aproxima do ideal contemporâneo de felicidade. As palavras usadas na Bíblia foram ashréi, no hebraico, e makarioi, em grego. Ashréi é a primeira palavra dos Salmos 1 e 119, e também pronunciada por Jesus nas bem-aventuranças, que os lingüistas gostam de traduzir por "felizes". Na verdade, esta tradução reflete "suas tendências apologéticas e sincretistas: a filosofia grega, pensavam, não é a única a poder propor ao homem o ideal hedonista da felicidade."[iv] "Ashréi repete-se 43 vezes na Bíblia hebraica. Esta exclamação (no plural), tem como radical ashar, que não evoca uma vaga felicidade de essência hedonista, mas implica uma retidão (yashar) do homem marchando na estrada sem obstáculos que leva a Iahveh e, aqui [no sermão do monte] em direção ao reino de Iahveh. Todos os dicionários etimológicos do hebraico bíblico dão como primeiro sentido ao radical ashar o de marchar; ser feliz é um sentido secundário e tardio. O sentido fundamental de ashar é "andar", "conduzir por uma via reta". Em linguagem poética, ashur é o pé do homem. Ashréi pontua a dinâmica da salvação introduzida na vida do homem em marcha em direção ao Reino de Iahveh. A participação na felicidade de Deus, em que consiste a bem-aventurança perfeita, está acima e além das capacidades do homem em sua condição terrestre."[v] Em termos práticos, podemos demonstrar a estupidez do mandamento e sub-mandamentos da sociedade contemporânea à luz do conceito de bem-aventurança, como segue. #1 Eliminarás todo sofrimento Sabemos que isso não é possível. A tradição cristã, ao falar da esperança do céu no pós-morte, ensina que "os nossos sofrimentos atuais não podem ser comparados com a glória que em nós será revelada" e que "os nossos sofrimentos leves e momentâneos estão produzindo para nós uma glória eterna que pesa mais do que todos eles", mas isso não nos exime da dor momentânea e da convivência com o sofrimento no tempo presente, pois "toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto. E não só isso, mas nós mesmos, que temos os primeiros frutos do Espírito, gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa adoção como filhos, a redenção do nosso corpo". Vivemos o "já e ainda não" do Reino de Deus, e toda expectativa de viver sem sofrer é ilusória e será frustrada, pois a vontade de Deus ainda não feita "assim na terra como no céu". Will Ferguson, em seu romance Ser Feliz©, denuncia a insensatez de uma sociedade feliz, sem contradições e contrariedades. Conta a história de Edwin De Valu, que edita um best-seller de auto-ajuda e alastra uma praga devastadora pela humanidade: a felicidade. O romance é um primor, que desmascara esta mitologia da realização pessoal e advoga a necessidade de aprendermos a conviver com a incompletude e imperfeições inescapáveis à condição humana. Com um humor impar, Ferguson diz que "se, um dia, alguém escrevesse um livro de auto-ajuda que realmente funcionasse, que sanasse nossos infortúnios e eliminasse nossos maus hábitos, os resultados seriam catastróficos".[vi] #2 Satisfarás todos os teus desejos Há quem diga que o ser humano é infeliz na medida que não realiza seus desejos. Mas a verdade é que quando seus desejos se realizam ele se torna infeliz de novo. Primeiro, porque percebe que ainda não está satisfeito. Depois porque tem medo de perder o objeto adquirido. E à proporção que novos desejos surgem, prossegue sua infelicidade. Desejos criam fantasias e as fantasias não têm fim, bem como os desejos que lhe dão origem. Por esta razão Oscar Wilde diz que "neste mundo só há duas tragédias - uma é não se conseguir o que se quer, a outra é conseguir". Shopenhauer disse a mesma coisa de outra maneira: "A vida oscila pois, como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento ao tédio". André Conte-Sponville esclarece: "sofrimento porque desejo o que não tenho e sofro esta falta; tédio porque tenho o que, por conseguinte, já não desejo".[vii] Viver para satisfazer desejos é uma tolice tão grande quanto enxugar gelo. #3 Realizarás o pleno potencial Acreditar que tudo pode atingir seu máximo grau de perfeição é uma herança que Lúcifer legou à humanidade. A Bíblia ensina que a aspiração da perfeição é um pecado, e na verdade, a mera crença na possibilidade da perfeição humana já é uma ofensa contra Deus. A perfeição possível deste lado do céu, enquanto nossa redenção não está consumada, é melhor traduzida como coerência. Paulo, apóstolo, escreve aos cristãos da cidade de Filipos encorajando-os à perfeição. Ao fazê-lo, aparentemente cai em contradição, pois no mesmo instante em que afirma estar longe da perfeição, se diz perfeito. O que ele está dizendo é que devemos viver de acordo com que o que já sabemos, o que já aprendemos, o que já alcançamos. Ele não propõe a perfeição em termos absolutos, mas espera que todos se esforcem para ser e fazer o melhor possível. "O Kant [filósofo, 1724-1804] usa uma idéia de felicidade como a estrela polar que, para o navegante, é só a referência. Ele não quer chegar à estrela polar, nem chegará. É utopia, portanto. A sabedoria não está em recusar o horizonte e se aquietar, mas em saber que você é um ser de busca, e não de encontro."[viii] Conclusão O primeiro passo, portanto, na direção da felicidade é o desmascaramento da felicidade conforme proposta pela sociedade contemporânea. Nas palavras atribuídas a Mário Quintana, a escolha de uma "felicidade realista", como ele mesmo descreveu: A princípio, bastaria ter saúde, dinheiro e amor, o que já é um pacote louvável, mas nossos desejos são ainda mais complexos. Não basta que a gente esteja sem febre: queremos, além de saúde, ser magérrimos, sarados, irresistíveis. Dinheiro? Não basta termos para pagar o aluguel, a comida e o cinema: queremos a piscina olímpica e uma temporada num spa cinco estrelas. E quanto ao amor? Ah, o amor... não basta termos alguém com quem podemos conversar, dividir uma pizza. Isso é pensar pequeno: queremos AMOR, todinho maiúsculo. Queremos estar visceralmente apaixonados, queremos ser surpreendidos por declarações e presentes inesperados, queremos jantar a luz de velas de segunda a domingo, queremos ser felizes assim e não de outro jeito. É o que dá ver tanta televisão. Simplesmente esquecemos de tentar ser felizes de uma forma mais realista. Ter um parceiro constante, pode ou não, ser sinônimo de felicidade. Você pode ser feliz solteiro, feliz com uns romances ocasionais, feliz com um parceiro, feliz sem nenhum. Não existe amor minúsculo, principalmente quando se trata de amor-próprio. Dinheiro é uma benção. Quem tem, precisa aproveitá-lo, gastá-lo, usufruí-lo. Não perder tempo juntando, juntando, juntando. Apenas o suficiente para se sentir seguro, mas não aprisionado. E se a gente tem pouco, é com este pouco que vai tentar segurar a onda, buscando coisas que saiam de graça, como um pouco de humor, um pouco de fé e um pouco de criatividade. Ser feliz de uma forma realista é fazer o possível e aceitar o improvável. Fazer exercícios sem almejar passarelas, trabalhar sem almejar o estrelato, amar sem almejar o eterno. Olhe para o relógio: hora de acordar. É importante pensar-se ao extremo, buscar lá dentro o que nos mobiliza, instiga e conduz mas sem exigir-se desumanamente. A vida não é um jogo onde só quem testa seus limites é que leva o prêmio. Não sejamos vítimas ingênuas desta tal competitividade. Se a meta está alta demais, reduza-a. Se você não está de acordo com as regras, demita-se. Invente seu próprio jogo. Faça o que for necessário para ser feliz. Mas não se esqueça que a felicidade é um sentimento simples, você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber sua simplicidade. Ela transmite paz e não sentimentos fortes, que nos atormentam e provocam inquietude no nosso coração. Isso pode ser alegria, paixão, entusiasmo, mas não felicidade.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

O evangelho dos evangélicos e o evangelho do reino de Deus

Ed Rene
“Nem todo aquele que me diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus.” [Jesus Cristo]

Estou convencido de que um é o evangelho dos evangélicos, outro é o Evangelho do Reino de Deus. Registro que uso o termo “evangélico” para me referir à face hegemônica da chamada igreja evangélica, como se apresenta na mídia radiofônica e televisiva. O evangelho dos evangélicos é estratificado. Tem a base e tem a cúpula. Precisamos falar com muito cuidado da base, o povo simples, fiel e crédulo. Mas precisamos igualmente discernir e denunciar a cúpula. A base é movida pela ingenuidade e singeleza da fé; a cúpula, muitas vezes é oportunista, mal intencionada, e age de má fé. A base transita livremente entre o catolicismo, o protestantismo e as religiões afro. A base vai à missa no domingo, faz cirurgia em centro espírita, leva a filha em benzedeira, e pede oração para a tia que é evangélica. Assim é o povo crédulo e religioso. Uma das palavras chave desta estratificação é “clericalismo”: os do palco manipulando os da platéia, os auto-instituídos guias espirituais tirando vantagem do povo simples, interesseiro, ignorante e crédulo. A cúpula é pragmática, e aproveita esse imaginário religioso como fator de crescimento da pessoa jurídica, e enriquecimento da pessoa física. Outra palavra chave é “sincretismo”. A medir por sua cúpula, a igreja evangélica virou uma mistura de macumba, protestantismo e catolicismo. Tem igreja que se diz evangélica promovendo “marcha do sal”: você atravessa um tapete de sal grosso, sob a bênção dos pastores, e se livra de mal olhado, dívida, e tudo que é tipo de doença. Já vi igreja que se diz evangélica distribuir cajado com água do Jordão (que é um canudo de bic com água de pia), para quem desejasse ungir o seu negócio, isto é, o seu business. Lembro de assistir a um programa de TV onde o apresentador prometia que Deus liberaria a unção da casa própria para quem se tornasse um mantenedor financeiro de sua igreja. O povo religioso é supersticioso e cheio de crendices. Assim como o Brasil. Somos filhos de portugueses, índios, africanos, e muitos imigrantes de todo canto do planeta. Falar em espíritos na cultura brasileira é normal. Crescemos cheios de crendices: não se pode passar por baixo de escada; gato preto dá azar; caiu a colher, vem visita mulher, caiu garfo, vem visita homem; e outras tantas idéias sem fundamento. Somos assim, o povo religioso é assim. Tem professor de universidade federal dando aula com cristal na mão para se energizar enquanto fala de filosofia. E a cúpula evangélica aproveita a onda e pratica um estelionato religioso: oferece uma proposta ritualística que aprisiona, promove a culpa e, principalmente, ilude, porque promete o que não entrega. Aliás, os jornais começam a noticiar que os fiéis estão reivindicando indenizações e processando igrejas por propaganda enganosa. O evangelho dos evangélicos é estratificado. A base é movida pela ingenuidade e singeleza da fé, e a cúpula é oportunista. A base transita entre o catolicismo, o protestantismo e as religiões-afro, e a cúpula é pragmática. A base é cheia de crendices e a cúpula pratica o estelionato religioso. O evangelho dos evangélicos é mercantilista, de lógica neoliberal. Nasce a partir dos pressupostos capitalistas, como, por exemplo, a supremacia do lucro, a tirania das relações custo-benefício, a ênfase no enriquecimento pessoal, a meritocracia – quem não tem competência não se estabelece. Palavra chave: prosperidade. Desenvolve-se no terreno do egocentrismo, disfarçado no respeito às liberdades individuais. Palavra chave: egoísmo. Promove a desconsideração de toda e qualquer autoridade reguladora dos investimentos privados, onde tudo o que interessa é o lucro e a prosperidade do empreendedor ou investidor. Palavra chave: individualismo. Expande-se a partir da mentalidade de mercado. Tanto dos líderes quanto dos fiéis. Os líderes entram com as técnicas de vendas, as franquias, as pirâmides, o planejamento de faturamento, comissões, marketing, tudo em favor da construção de impérios religiosos. Enquanto os fiéis entram com a busca de produtos e serviços religiosos, estando dispostos inclusive a pagar financeiramente pela sua satisfação. Em síntese, a religião na versão evangélica hegemônica é um negócio.O sujeito abre sua micro-empresa religiosa, navega no sincretismo popular, promete mundos e fundos, cria mecanismos de vinculação e amarração simbólicas, utiliza leis da sociologia e da psicologia, e encontra um povo desesperado, que está disposto a pagar caro pelo alívio do seu sofrimento ou pela recompensa da sua ganância. Em terceiro lugar, o evangelho dos evangélicos é mágico. Promove a infantilização em detrimento da maturidade, a dependência em detrimento da emancipação, e a acomodação em detrimento do trabalho. Pra ser evangélico você não precisa amadurecer, não precisa assumir responsabilidades, não precisa agir. Não precisa agregar virtudes ao seu caráter ou ao processo de sua vida. Primeiro porque Deus resolve. Segundo porque se Deus não resolver, o bispo ou o apóstolo resolvem. Observe a expressão: “Estou liberando a unção”. Pensando como isso pode funcionar, imaginei que seria algo como o apóstolo ou bispo dizendo ao Espírito Santo: “Não faça nada por enquanto, eles não contribuíram ainda, e eu não vou liberar a unção”. Existe, por exemplo, a unção da superação da crise doméstica. Como isso pode acontecer? A pessoa passa trinta anos arrebentando com o seu casamento, e basta se colocar sob as mãos ungidas do apóstolo, que libera a unção, e o casamento se resolve. Quem não quer isso? Mágica pura. O sujeito é mau-caráter, incompetente para gerenciar o seu negócio, e não gosta de trabalhar. Mas basta ir ao culto, dar uma boa oferta financeira, e levar para casa um vidrinho de óleo de cozinha para ungir a empresa e resolver todos os problemas financeiros. Essa postura de não assumir responsabilidades, de não agir com caráter, e esperar que Deus resolva, ou que o apóstolo ou bispo liberem a unção tem mais a ver com pensamento mágico do que com fé.Em quarto lugar, o evangelho dos evangélicos tem espírito fundamentalista. Peço licença para citar Frei Beto: “O fundamentalismo interpreta e aplica literalmente os textos religiosos, não sabe que a linguagem simbólica da Bíblia, rica em metáforas, recorre a lendas e mitos para traduzir o ensinamento religioso.” O espírito fundamentalista é literalista, e o mais grave é que o espírito fundamentalista se julga o portador da verdade, não admite críticas, considerações ou contribuições de outras correntes religiosas ou científicas. Quem tem o espírito fundamentalista não dialoga, pois considera infiéis, heréticos, ou, na melhor das hipóteses, equivocados sinceros, todos os que não concordam com seus postulados, que não são do mesmo time, e não têm a mesma etiqueta. Quem tem o espírito fundamentalista se considera paradigma universal. Dialoga por gentileza, não por interesse em aprender. Ouve para munir-se de mais argumentos contra o interlocutor. Finge-se de tolerante para reforçar sua convicção de que o outro merece ser queimado nas fogueiras da inquisição. Está convencido de que só sua verdade há de prevalecer. Mais uma vez Frei Beto: “o fundamentalista desconhece que o amor consiste em não fazer da diferença, divergência”. Por causa do espírito fundamentalista, o evangelho dos evangélicos é sectário, intolerante, altamente desconectado da realidade. O evangelho dos que têm o espírito do fundamentalismo é dogmático, hermético, fechado a influências, e, portanto, é burro e incoerente.Em quinto lugar, o evangelho dos evangélicos é um simulacro. Simulacro é a fotografia mais bonita que o sanduíche. Não me iludo, o evangelho dos evangélicos é mais bonito na televisão do que na vida. As promessas dos líderes espirituais são mais garantidas pela sua prepotência do que pela sua fé. Temos muitos profetas na igreja evangélica, mas acredito que tenhamos muito mais falsos-profetas. Os testemunhos dos abençoados são mais espetaculares do que a realidade dos cristãos comuns. De vez em quando (isso faz parte da dimensão masoquista da minha personalidade) fico assistindo estes programas, e penso que é jogada de marketing, testemunho falso. Mas o fato é que podem ser testemunhos por amostragem. Isto é, entre os muitos que faliram, há sempre dois ou três que deram certo. O testemunho é vendido como regra, mas na verdade é apenas exceção. A aparência de integridade dos líderes espirituais é mais convincente na TV e no rádio do que na realidade de suas negociatas. A igreja evangélica esta envolvida nos boatos com tráficos de armas, lavagem de dinheiro, acordos políticos, vendas de igrejas e rebanhos, imoralidade sexual, falsificação de testemunho, inadimplência, calotes, corrupção, venda de votos. A integridade do palco é mais atraente do que a integridade na vida. A fé expressa no palco, e nas celebrações coletivas é mais triunfante, do que a fé vivida no dia a dia. Os ideais éticos, e os princípios de vida são mais vivos nos nossos guias de estudos bíblicos e sermões do que nas experiências cotidianas dos nossos fiéis. Os gabinetes pastorais que o digam: no ambiente reservado do aconselhamento espiritual a verdade mostra sua cara. Estratificado, mágico, mercantilista, fundamentalista, e simulacro. Eis o evangelho dos “evangélicos”.
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Por Ed René Kivitz

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